Wednesday, October 15, 2014

Curt Nimuendajú cinematográfico


(...) como devo escrever, a fim de que o homem, não importa quem seja,
emerja das páginas da história a seu respeito com a força da palpabilidade física
de sua existência, com a irrefutabilidade de sua realidade semi-imaginária,
com a qual o vejo e o sinto?
Este é o ponto como entendo, este é o segredo da questão...
(Maksim Górki, em carta para Konstantin Fedin)


É com alegria e uma certa apreensão que escrevemos este texto para a Biblioteca Digital Curt Nimendajú. A alegria se deve ao fato de saber que compartilhamos uma admiração, quase culto, à figura de Curt Nimuendajú, que aqui dispensa apresentações – único lugar até o momento onde falamos sobre ele sem preâmbulos. E apreensão, por nossa abordagem heterodoxa e, antes de tudo pessoal, sobre este ícone da etnologia.

Um filme de longa-metragem é uma obra circunscrita em certos limites: duração rígida, expressão artística&comercial, equipe polifônica, público de massa... Evidentemente, as variantes são muitas e flexíveis. A abordagem de um tema, seja em forma de documentário ou ficção, demanda um verdadeiro trabalho de concisão na etapa da escrita do roteiro e depois, durante a montagem. Mas, uma vida como a de Curt Nimuendajú é assunto para mil e uma noites. Então, para lidarmos com esses condicionamentos “roubamos no jogo”: ora simplificando, ora ampliando, ora estilizando – pensando sempre na preservação da essência. Afinal, “o papel de toda obra de arte se impõe à necessidade da exposição coerente e orgânica do tema, do material, da trama, da ação, do movimento interno da sequência cinematográfica e de sua ação dramática como um todo.”[1]


O nosso Curt Nimuendajú cinematográfico se baseia em referências históricas, na profusão de material etnográfico de sua autoria, principalmente, e nos registros memorialísticos – tanto os deixados por ele mesmo, quanto os perpetuados pelos povos que ele visitou. Os Apinayé e os Canela-Rankokamekrá, por exemplo, nos ajudaram a detalhar algumas facetas e ações de Curt Nimuendajú – chamado por eles Tamgaága e Kokaypó, respectivamente. Seu Moisés Apinayé tinha 10 anos quando o viu pela última vez, de partida, portando seu chapéu enfeitado carinhosamente pelos Apinayé com penas de aves – cena/memória que entrou para o filme. Nonagenário, Seu Moisés é filho do “capitão da aldeia Bacaba” - José Dias Matúk, amigo e informante de Nimuendajú – e personagem do filme, interpretado por Zé Cabelo, um dos principais cantores daquele povo. Os Apinayé também reconstituíram para as filmagens um costume descrito e fotografado por Curt Nimuendajú, que não era realizado há mais de 30 anos:

Quando um grupo de homens volta de alguma caçada mais demorada para a aldeia, resolve, às vezes, fazer sua entrada não em forma de corrida de toras, como fazem usualmente, mas sobre pernas de pau. Ninguém na aldeia sabe deste plano porque os preparativos são feitos às escondidas, na mata. As pernas de pau são varas de comprimento de 3,20 metros e mais (...) a quase dois metros do chão, são amarradas, à maneira de estribos, um par de pauzinhos em cada vara. (...) Os caçadores enfeitam-se com peças de palha, penduram nas costas a carne da caça e as armas e, de repente, entram na aldeia caminhando alto por cima dos arbustos do campo, num espetáculo grotesco que causa júbilo nos espectadores. As mulheres procuram, então, a toda pressa, algum aipim ou batata, já preparados e, espetando-as em ponta de vara as apresenta aos homens, enquanto estes dão algumas vezes a volta pela rua da aldeia. Como, porém, o manejo de pernas de pau, tão pesadas, os cansa depressa, têm de descansar de vez em quando, o que fazem em cima da aba das cobertas das casas. Na manhã seguinte repetem a brincadeira.[2]

A reconstituição do evento terminou com um canto em que pediam perdão aos antepassados pelo esquecimento.

Entre os Canela-Rankokamekrá, a geração de sobrinhos, netos - parentes que se envolveram com Kokaypó na década de 1930, contracenaram em 2012, com o ator alemão Peter Ketnath. As encenações fluíram, houve colaboração, curiosidade e as situações delicadas foram contornadas, como por exemplo, quando o pai de uma das atrizes a proibiu de fazer o papel de uma pessoa morta. Ele e os demais figurantes não se importavam em encenar o velório e os cantos fúnebres, mas a moça não poderia fazer o papel da defunta.

Morreu uma daquelas moças que são iniciadas junto com os guerreiros novos (…) e que pertencem àquela classe de fidalguia cerimonial que chamamos ‘hamrén’. Era muito meiga e bonita e por isso muito benquista por todos. (...)
Puseram o cadáver sobre esteiras no chão e enfeitaram-no como nos dias de gala, com penugem de gavião e tinta de urucu, e com os dois pequenos triângulos pretos, de ponta para baixo, em cada face (…). Mas eis que se junta no pátio um número de moços da classe de idade da finada e, sentando-se, com um cantador de maracá à frente, começaram a cantar de uma maneira extremamente triste e penosa, em voz muito baixa. Em dado momento se levantaram e invadiram a casa onde jazia o cadáver enfeitado, e continuando a cantiga em frente dele, esboçavam os movimentos da sua dança que a finada costumava presidir da parte das moças.
De repente, três deles rodearam pela cabeceira do leito e, erguendo o cadáver, puseram-no de pé, fazendo-o executar com os joelhos e os braços os movimentos que a defunta fazia em vida quando dançava à frente de seus companheiros! Nesse momento o desespero dos índios chegou ao auge: nunca tinha visto índios chorar assim. Choravam todos, homens, mulheres e crianças. E no meio desses rostos desfeitos pelo pranto o rosto pálido e sereno da Pepkwéi morta, em pé, dançando…
A cerimônia durou apenas alguns segundos. (...) Se essas coleções que se vêem nas vitrinas dos museus pudessem falar!”[3] 

Realizamos esta cena, que Curt Nimuendajú descreveu como “horrivelmente fantástica”, substituindo a atriz Canela pela diretora, que se passou pela “hamrén”.

O fato de substituirmos, na versão final do filme, a imagem filmada (“real”) por ícones gráficos (imagens desenhadas), nos dá uma enorme liberdade pois estamos, de maneira evidente, representando um personagem, não uma pessoa.

Curt Nimuendajú foi interpretado por Peter Ketnath. Peter é conhecido no Brasil por protagonizar os filmes “Cinema, Aspirinas e Urubus”, de Marcelo Gomes e “Deserto Feliz”, de Paulo Caldas. Nas aldeias, Peter contracenou com os índios e em Belo Horizonte com atores profissionais, em estúdio. O diálogo com os povos retratados em NIMUENDAJÚ foi muito importante para a criação e contribuiu imensamente para o desenvolvimento e caracterizações de personagens, de ambientes, do conteúdo do roteiro, do storyboard e da arte como um todo. Nesse processo, vários trechos do roteiro foram abandonados. Novos trechos inseridos. O Curt Nimuendajú cinematográfico é constituído de contribuições simultâneas, que tangem expressões de pensamentos tão distintos quanto imagem e som, conhecimento acadêmico e criação artística.

À medida em que conhecemos a história do sujeito que passou dois ter­ços de sua vida entre os índios, até morrer entre os Tikuna, no Alto Solimões, sentimos que tínhamos em mãos um material precioso para abordar a temática indígena no cinema. Essa relação com os índios é o estofo político, social, estético e afetivo do projeto NIMUENDAJÚ. O centro da narrativa é ocupado pela trajetória de um homem que luta de forma implacável e inarredável pelos seus objetivos. Afinal, o que quer Nimuendajú? Ciente das mazelas e do poder de fogo de seus oponentes - os latifundiários, o governo brasileiro, a opinião pública acerca dos povos indígenas - , nosso protagonista busca forças na estreita convivência com seu objeto de estudos, vale dizer, seu objeto de luta, justamente os povos, para a combustão de seu movere.  Nimuendajú age, encabeça, provoca, lidera ações ao mesmo tempo em que desarma as investidas do mundo hostil à sua volta. Nimuendajú é, também, ferido – inclusive fatalmente – por elas.

Estou seguro de que a revolução digital vai interferir na
elaboração de imagens e dar aos cineastas a possibilidade
de trabalhar como verdadeiros animadores. Quando se
libertar da escravidão da fotografia o cinema entrará no
domínio que lhe é próprio, o da invenção de imagens.
(Peter Greenaway)

Optamos pela realização de um filme de ficção, em animação. Infelizmente este gênero é difundido no Brasil sobretudo pelas majors americanas, que investem especificamente no público infantil e se utiliza de um repertório padronizado, cartoonizado, criando uma percepção limitada sobre o cinema de animação. A animação possui um milhão de possibildades outras, pois a imagem não é capturada, mas erigida. A criação é absoluta, é a Gênese, a Cosmogonia. Nos convertemos em Hesíodo ao animar, dotando de ânimo(a) ao que há de mais primário na horizontalidade do papel ou da tablet.

Com liberdade para criar Curt Nimuendajú e todo o seu universo a partir de desenhos, quisemos preservar a riqueza da pesquisa iconográfica e a pujança “real” de personagens e cenários. Adotamos método de realização similar ao do filme VALSA COM BASHIR (Ari Folman, Israel, França, 2009): o de filmar e depois animar, com uma diferença: não nos detivemos em estúdio, mas, filmamos, in loco, em aldeias Apinayé, em Tocantins, e Canela-Rankokamekrá, no Maranhão. O som direto gravado nesta etapa (diálogos e sons ambientes), será a base sobre a qual toda a animação será sedimentada, conferindo palpabilidade física às pessoas e coisas a serem convertidos em desenho.

Tivemos suporte do prêmio FILME EM MINAS (Programa de estímulo ao audiovisual do Governo de Minas Gerais/Companhia Energética de MG, via Lei do Audiovisual/ Ancine, Minitério da Cultura) para realizar a preparação e pré-produção do filme. No momento, buscamos recursos para iniciar a sua etapa mais laboriosa, a animação, e seguir com o projeto até a fase final: a exibição nas telas de cinema.

Convidamos vocês a conhecer o processo de realização do filme e os detalhes da produção no blog:
E o vídeo promocional de 4 minutos, abaixo, que mostra o processo de desenvolvimento do projeto até o momento.
 
Tania Anaya e Kleber Gesteira Matos


[1] Eisenstein, Sergei. O sentido do filme. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1990.
[2]  Extraído da monografia de Curt Nimuendajú sobre os Apinayé. Os Apinayé. Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém, Pará, 1983.
[3] Trecho de carta de Curt Nimuendajú a Carlos Estevão de Oliveira. Cartas do Sertão, Museu Nacional de Etnologia, Assírio & Alvim, 2000.

2 comments:

  1. Tenho uma admiração enorme pela história de vida e trabalhos realizados por esse homem. Certamente será um filme de grande aceitação, sobretudo nos ambientes acadêmicos. O divulgarei ao máximo.

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  2. Muita ansiedade para o lançamento deste filme!!! Acho que será incrível!!

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