(...) como devo
escrever, a fim de que o homem, não importa quem seja,
emerja das páginas
da história a seu respeito com a força da palpabilidade física
de sua existência,
com a irrefutabilidade de sua realidade semi-imaginária,
com a qual o vejo e
o sinto?
Este é o ponto como
entendo, este é o segredo da questão...
(Maksim Górki, em carta para Konstantin Fedin)
É com
alegria e uma certa apreensão que escrevemos este texto para a Biblioteca
Digital Curt Nimendajú. A alegria se deve ao fato de saber que compartilhamos
uma admiração, quase culto, à figura de Curt Nimuendajú, que aqui dispensa
apresentações – único lugar até o momento onde falamos sobre ele sem preâmbulos.
E apreensão, por nossa abordagem heterodoxa e, antes de tudo pessoal, sobre
este ícone da etnologia.
Um
filme de longa-metragem é uma obra circunscrita em certos limites: duração
rígida, expressão artística&comercial, equipe polifônica, público de massa...
Evidentemente, as variantes são muitas e flexíveis. A abordagem de um tema,
seja em forma de documentário ou ficção, demanda um verdadeiro trabalho de
concisão na etapa da escrita do roteiro e depois, durante a montagem. Mas, uma
vida como a de Curt Nimuendajú é assunto para mil e uma noites. Então, para lidarmos
com esses condicionamentos “roubamos no jogo”: ora simplificando, ora
ampliando, ora estilizando – pensando sempre na preservação da essência. Afinal,
“o papel de toda obra de arte se impõe à necessidade da exposição coerente e
orgânica do tema, do material, da trama, da ação, do movimento interno da
sequência cinematográfica e de sua ação dramática como um todo.”[1]
O
nosso Curt Nimuendajú cinematográfico se baseia em referências históricas, na
profusão de material etnográfico de sua autoria, principalmente, e nos
registros memorialísticos – tanto os deixados por ele mesmo, quanto os
perpetuados pelos povos que ele visitou. Os Apinayé e os Canela-Rankokamekrá,
por exemplo, nos ajudaram a detalhar algumas facetas e ações de Curt Nimuendajú
– chamado por eles Tamgaága e Kokaypó, respectivamente. Seu Moisés Apinayé
tinha 10 anos quando o viu pela última vez, de partida, portando seu chapéu
enfeitado carinhosamente pelos Apinayé com penas de aves – cena/memória que
entrou para o filme. Nonagenário, Seu Moisés é filho do “capitão da aldeia Bacaba” - José
Dias Matúk, amigo e informante de Nimuendajú – e personagem do filme,
interpretado por Zé Cabelo, um dos principais cantores daquele povo. Os Apinayé
também reconstituíram para as filmagens um costume descrito e fotografado por
Curt Nimuendajú, que não era realizado há mais de 30 anos:
Quando
um grupo de homens volta de alguma caçada mais demorada para a aldeia, resolve,
às vezes, fazer sua entrada não em forma de corrida de toras, como fazem usualmente,
mas sobre pernas de pau. Ninguém na aldeia sabe deste plano porque os
preparativos são feitos às escondidas, na mata. As pernas de pau são varas de
comprimento de 3,20 metros e mais (...) a quase dois metros do chão, são
amarradas, à maneira de estribos, um par de pauzinhos em cada vara. (...) Os
caçadores enfeitam-se com peças de palha, penduram nas costas a carne da caça e
as armas e, de repente, entram na aldeia caminhando alto por cima dos arbustos
do campo, num espetáculo grotesco que causa júbilo nos espectadores. As
mulheres procuram, então, a toda pressa, algum aipim ou batata, já preparados
e, espetando-as em ponta de vara as apresenta aos homens, enquanto estes dão
algumas vezes a volta pela rua da aldeia. Como, porém, o manejo de pernas de pau,
tão pesadas, os cansa depressa, têm de descansar de vez em quando, o que fazem
em cima da aba das cobertas das casas. Na manhã seguinte repetem a brincadeira.[2]
A
reconstituição do evento terminou com um canto em que pediam perdão aos
antepassados pelo esquecimento.
Entre
os Canela-Rankokamekrá, a geração de sobrinhos, netos - parentes que se
envolveram com Kokaypó na década de 1930, contracenaram em 2012, com o ator
alemão Peter Ketnath. As encenações fluíram, houve colaboração, curiosidade e as
situações delicadas foram contornadas, como por exemplo, quando o pai de uma
das atrizes a proibiu de fazer o papel de uma pessoa morta. Ele e os demais
figurantes não se importavam em encenar o velório e os cantos fúnebres, mas a
moça não poderia fazer o papel da defunta.
Morreu uma daquelas moças que são iniciadas junto com os guerreiros
novos (…) e que pertencem àquela classe de fidalguia cerimonial que chamamos
‘hamrén’. Era muito meiga e bonita e por isso muito benquista por todos. (...)
Puseram o cadáver sobre esteiras no chão e enfeitaram-no como nos dias
de gala, com penugem de gavião e tinta de urucu, e com os dois pequenos
triângulos pretos, de ponta para baixo, em cada face (…). Mas eis que se junta
no pátio um número de moços da classe de idade da finada e, sentando-se, com um
cantador de maracá à frente, começaram a cantar de uma maneira extremamente
triste e penosa, em voz muito baixa. Em dado momento se levantaram e invadiram
a casa onde jazia o cadáver enfeitado, e continuando a cantiga em frente dele,
esboçavam os movimentos da sua dança que a finada costumava presidir da parte
das moças.
De repente, três deles rodearam pela cabeceira do leito e, erguendo o
cadáver, puseram-no de pé, fazendo-o executar com os joelhos e os braços os
movimentos que a defunta fazia em vida quando dançava à frente de seus
companheiros! Nesse momento o desespero dos índios chegou ao auge: nunca tinha
visto índios chorar assim. Choravam todos, homens, mulheres e crianças. E no
meio desses rostos desfeitos pelo pranto o rosto pálido e sereno da Pepkwéi
morta, em pé, dançando…
A cerimônia durou apenas alguns segundos. (...) Se essas coleções que
se vêem nas vitrinas dos museus pudessem falar!”[3]
Realizamos
esta cena, que Curt Nimuendajú descreveu como “horrivelmente fantástica”,
substituindo a atriz Canela pela diretora, que se passou pela “hamrén”.
O
fato de substituirmos, na versão final do filme, a imagem filmada (“real”) por
ícones gráficos (imagens desenhadas), nos dá uma enorme liberdade pois estamos,
de maneira evidente, representando um personagem, não uma pessoa.
Curt Nimuendajú foi interpretado por Peter Ketnath.
Peter é conhecido no Brasil por protagonizar os filmes “Cinema, Aspirinas e
Urubus”, de Marcelo Gomes e “Deserto Feliz”, de Paulo Caldas. Nas aldeias,
Peter contracenou com os índios e em Belo Horizonte com atores profissionais,
em estúdio. O
diálogo com os povos retratados em NIMUENDAJÚ foi muito importante para a
criação e contribuiu imensamente para o desenvolvimento e caracterizações de
personagens, de ambientes, do conteúdo do roteiro, do storyboard e da arte como um todo. Nesse processo, vários trechos
do roteiro foram abandonados. Novos trechos inseridos. O Curt Nimuendajú
cinematográfico é constituído de contribuições simultâneas, que tangem
expressões de pensamentos tão distintos quanto imagem e som, conhecimento
acadêmico e criação artística.
À medida em que conhecemos
a história do sujeito que passou dois terços de sua vida entre os índios, até
morrer entre os Tikuna, no Alto Solimões, sentimos que tínhamos em mãos um
material precioso para abordar a temática indígena no cinema. Essa relação com os índios é o estofo político,
social, estético e afetivo do projeto NIMUENDAJÚ. O
centro da narrativa é ocupado pela trajetória de um homem que luta de forma implacável
e inarredável pelos seus objetivos. Afinal, o que quer Nimuendajú? Ciente das
mazelas e do poder de fogo de seus oponentes - os latifundiários, o governo
brasileiro, a opinião pública acerca dos povos indígenas - , nosso protagonista
busca forças na estreita convivência com seu objeto de estudos, vale dizer, seu
objeto de luta, justamente os povos, para a combustão de seu movere. Nimuendajú
age, encabeça, provoca, lidera ações ao mesmo tempo em que desarma as
investidas do mundo hostil à sua volta. Nimuendajú é, também, ferido –
inclusive fatalmente – por elas.
Estou seguro de que
a revolução digital vai interferir na
elaboração de
imagens e dar aos cineastas a possibilidade
de trabalhar como
verdadeiros animadores. Quando se
libertar da
escravidão da fotografia o cinema entrará no
domínio que lhe é
próprio, o da invenção de imagens.
(Peter Greenaway)
Optamos
pela realização de um filme de ficção, em animação. Infelizmente este gênero é difundido
no Brasil sobretudo pelas majors
americanas, que investem especificamente no público infantil e se utiliza de um
repertório padronizado, cartoonizado, criando
uma percepção limitada sobre o cinema de animação. A animação possui um milhão
de possibildades outras, pois a imagem não é capturada, mas erigida. A criação
é absoluta, é a Gênese, a Cosmogonia. Nos convertemos em Hesíodo ao animar,
dotando de ânimo(a) ao que há de mais primário na horizontalidade do papel ou
da tablet.
Com
liberdade para criar Curt Nimuendajú e todo o seu universo a partir de desenhos,
quisemos preservar a riqueza da pesquisa iconográfica e a pujança “real” de personagens e cenários. Adotamos método de realização similar ao do
filme VALSA COM BASHIR (Ari Folman, Israel, França, 2009): o de filmar e depois
animar, com uma diferença: não nos detivemos em estúdio, mas, filmamos, in loco, em aldeias Apinayé, em
Tocantins, e Canela-Rankokamekrá, no Maranhão.
O som direto gravado nesta etapa (diálogos e sons ambientes), será a base sobre
a qual toda a animação será sedimentada, conferindo palpabilidade
física às pessoas e coisas a serem convertidos em
desenho.
Tivemos suporte do prêmio FILME EM MINAS (Programa de estímulo ao audiovisual do Governo de
Minas Gerais/Companhia Energética de MG, via Lei do Audiovisual/ Ancine,
Minitério da Cultura) para realizar a preparação e pré-produção do filme.
No momento, buscamos recursos para iniciar
a sua etapa mais laboriosa, a animação, e seguir com o projeto até a fase
final: a exibição nas telas de cinema.
Convidamos vocês a conhecer o processo de
realização do filme e os detalhes da produção no blog:
E o vídeo promocional de 4 minutos, abaixo,
que mostra o processo de desenvolvimento do projeto até o momento.
Tania Anaya e Kleber Gesteira Matos
[1] Eisenstein, Sergei. O sentido do
filme. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1990.
[2] Extraído da monografia de Curt Nimuendajú sobre os Apinayé. Os Apinayé. Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém, Pará, 1983.
[3] Trecho de carta de Curt Nimuendajú
a Carlos Estevão de Oliveira. Cartas do Sertão, Museu Nacional de Etnologia,
Assírio & Alvim, 2000.
Tenho uma admiração enorme pela história de vida e trabalhos realizados por esse homem. Certamente será um filme de grande aceitação, sobretudo nos ambientes acadêmicos. O divulgarei ao máximo.
ReplyDeleteMuita ansiedade para o lançamento deste filme!!! Acho que será incrível!!
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