por Salvador Pane Baruja*
Tem-se a impressão de que Nimuendajú, por ter acreditado nessas ligações, dedicou-se a criar condições para a (re)conciliação. Para isso, defendeu o direito do indígena a uma existência étnica própria e exigiu que o governo brasileiro reconhecesse “a obrigação moral e histórica de velar pela sorte dos que foram espoliados em proveito da nova nacionalidade”.
Razoável seria identificar nesse manifesto de 1933 algumas sementes que, mais ou menos politicamente modificadas, constam da Constituição de 1988.
Concretamente, propôs que fossem criadas “reservas territoriais para cada tribo ou fragmentos de tribo ainda existente”. É nelas que os índios deveriam recuperar e conservar seu “organismo étnico”, promover mudanças culturais, incluindo na sua economia, mas respeitando a organização social tribal, mesmo que isso viesse contrariar a dos “neobrasileiros”.
Profético, romântico – é pouco relevante qualquer rótulo-espartilho escolhido nesta segunda década do século 21 para tentar classificar seu pensamento e sua ação na primeira metade do século passado. Razoável seria identificar nesse manifesto de 1933 algumas sementes que, mais ou menos politicamente modificadas, constam da Constituição de 1988. Além de outras, que ainda poderiam frutificar rumo a uma sociedade mais equitativa para todas as pessoas que a constituem.
Sem outro apoio fora suas convicções (e o de pessoas como Heloisa Alberto Torres e Carlos Estevão de Oliveira), Nimuendajú não somente entrou em choque com os intelectuais xenófobos do Estado Novo. Ele também desafiou abertamente os militares que davam as cartas na questão indígena no primeiro governo de Getúlio Vargas, além de confrontos — mas também acordos — com fazendeiros, seringalistas, religiosos e, inclusive, indígenas. Qual teria sido o impulso vital que o levou a viver durante 39 anos de tribo em tribo, às vezes em situações que hoje parecem ser quase que de mendicância?
Uma pista poderia ser a frase de sua irmã Olga, que, da distante Iena, escreveu em abril de 1938: “Alguns dias atrás falávamos que cada pessoa só deveria trabalhar na área em que está interessada. Assim haveria mais pessoas excelentes no mundo. Mas infelizmente para a maioria o trabalho é apenas como as tetas da vaca. Você é uma das poucas exceções e, apesar de algumas desagradáveis experiências de vida, uma pessoa de sorte”. Na biografia, eu aponto indícios que permitiriam aprofundar essa questão.
Nem herói, nem bafejado pela sorte, muito menos inimigo do “progresso”. Nimuendajú apenas expressou, à sua maneira, o atual conceito de diversidade: “A civilização moderna é apenas uma das formas que a cultura humana pode tomar, as culturas das tribos de índios são outras tantas”. Justamente por ser assim, defrontou-se durante décadas com amostras do poder explícito (e travestido de única opção possível de sociedade) do etnocentrismo resultante da “civilização cristã-ocidental”.
O manifesto de 1933 ficou depositado no Museu Nacional até a sua publicação agora na presente biografia. Essa espécie de aparição tardia parece ser um traço característico do vasto legado de Curt Nimuendajú.
Um de muitos exemplos reunidos na biografia: em 1923, a penúria orçamentária do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) obrigou-o a abandonar o acampamento onde liderara a “pacificação” dos “antropófagos” Parintintin, há décadas acossados por seringalistas e moradores de regiões ribeirinhas do rio Madeira. O diretor do órgão, o ainda general Cândido Rondon, outorgou, porém, os “louros da pacificação” ao antecessor de Nimuendajú e ao seringalista das proximidades, que pagara os custos da “pacificação” estatal. Demitido do SPI e testemunha da acelerada extinção física dos Parintintin, Nimuendajú recusou-se a repetir, anos depois, a operação com os Açurini, procedendo a um rigoroso mea-culpa: “(…) a pacificação dos Parintintin foi o meu último crime dessa natureza (…)”
Curioso é que, convencido do caráter simbiótico dessas relações, ele não tenha sugerido criar uma instituição-irmã do SPI – uma espécie de Serviço de Civilização do Cristão. No lugar de “pacificar” indígenas, seus membros se dedicariam a desarmar “o espírito” de quem tem poder de decisão em gabinetes estatais e escritórios empresariais e conta com poder de fogo em estradas e fazendas. Ainda teriam de ser incluídos os grupos de pessoas que realimentam preconceitos no dia-a-dia, tanto da “superioridade do civilizado” quanto da “inferioridade do primitivo” — mas também do reverso dessa equação ideológica.
Proponho que Nimuendajú teve impulsos e práticas pioneiros, em parte talvez por não ter frequentado a universidade. Sem ter de confirmar teorias acadêmicas, ele confrontou suas próprias observações e reflexões aos escritos de especialistas, além do intercâmbio epistolar com alguns deles. Daí teria surgido o seu autodidatismo, que também espelha pontos de vista de terceiros. A questão nevrálgica seria menos possuir (ou não) um diploma, e mais bem buscar desenvolver o pensamento inquiridor, bem como adquirir a disposição de aceitar tanto equívocos próprios quanto contribuições alheias.
A sua primeira obra já traz várias teses e conclusões que, cem anos depois, continuam influenciando etnólogos, antropólogos e filósofos (embora Nimuendajú, um ano antes de morrer, se considerasse “tolo” por ter formulado algumas delas). Uma leitura desapaixonada de “Die Sagen von der Erschaffung und Vernichtung der Welt als Grundlagen der Religion der Apapokuva-Guarani” mostra que, em 1914, Nimuendajú elaborou várias premissas do método da “observação participante” (e o próprio livro já é o primeiro fruto dessa prática). Isto é, uma década antes do polonês Bronislau Malinowski apresentar o que hoje é tido como o padrão de pesquisa de campo.
Em 1987, ao assinar junto com Charlotte Emmerich a tradução ao português desse livro de Nimuendajú, Eduardo Viveiros de Castro citou esse fato. Comparando a primeira obra de Nimuendajú à de Malinowski, ficam claras as semelhanças entre ambas. Mas são as diferenças que tornam mais visíveis as inovadoras propostas do alemão que virou índio no Brasil. É como se ele, na verdade, tivesse praticado a “participação observadora” nas aldeias visitadas.
O manifesto de 1933 ficou depositado no Museu Nacional até a sua publicação agora na presente biografia. Essa espécie de aparição tardia parece ser um traço característico do vasto legado de Curt Nimuendajú. Convidado por Rondon em 1943 para chefiar o Serviço Etnológico do Conselho Nacional de Política Indígena, ele desabafou sua amargura intelectual: “Porque a mim? Ninguém do SPI nem do CPI jamais leu uma linha do que eu escrevi, nem conhece sequer o título de qualquer publicação minha”. Seu primeiro livro só foi traduzido do alemão ao português 73 anos após a edição original.
Observa-se nos últimos anos a salutar iniciativa de reduzir esse intervalo, mesmo que vários outros trabalhos, em inglês e alemão, ainda esperam vir à luz para o público da pátria que ele adotou em 1922. Desejável seria que os conhecimentos neles contidos “voltassem”, transformados, às comunidades onde surgiram. Mais precisamente, aos grupos indígenas, também mudados, que ainda existem.
* Pane Baruja é autor da biografia Curt Nimuendajú — o alemão que virou índio no Brasil (2014) e mantém o website De gringo a indígena, sobre Curt Nimuendajú, León Cadogan, Egon Shaden e Bartolomeu Melià.
- Nimuendajú, Curt. 1933. Algumas considerações sobre o problema do indio no Brazil. In Pane Baruja, Salvador. 2014. Curt Nimuendajú — o alemão que virou índio no Brasil, p. 302-313. Bochum (Alemanha): Edição eletrônica pelo autor.
A frase acima, extraída desse inédito documento incluído na primeira biografia de Curt Nimuendajú em português, aponta para o que, aparentemente, ele considerava ser o aspecto central das relações entre indígenas e não-indígenas: a extinção física e religioso-cultural dos primeiros significava perdas morais e civilizatórias para os últimos.“Vergonhosa é a usurpação, em conivência com as autoridades, das últimas terras ocupadas pelas tribos (…) como também o é o estado de promiscuidade sórdida que tanto desmoraliza o civilizado como aniquila o índio”. (Curt Nimuendajú, “Algumas considerações sobre o problema do indio no Brazil”)
Tem-se a impressão de que Nimuendajú, por ter acreditado nessas ligações, dedicou-se a criar condições para a (re)conciliação. Para isso, defendeu o direito do indígena a uma existência étnica própria e exigiu que o governo brasileiro reconhecesse “a obrigação moral e histórica de velar pela sorte dos que foram espoliados em proveito da nova nacionalidade”.
Razoável seria identificar nesse manifesto de 1933 algumas sementes que, mais ou menos politicamente modificadas, constam da Constituição de 1988.
Concretamente, propôs que fossem criadas “reservas territoriais para cada tribo ou fragmentos de tribo ainda existente”. É nelas que os índios deveriam recuperar e conservar seu “organismo étnico”, promover mudanças culturais, incluindo na sua economia, mas respeitando a organização social tribal, mesmo que isso viesse contrariar a dos “neobrasileiros”.
Profético, romântico – é pouco relevante qualquer rótulo-espartilho escolhido nesta segunda década do século 21 para tentar classificar seu pensamento e sua ação na primeira metade do século passado. Razoável seria identificar nesse manifesto de 1933 algumas sementes que, mais ou menos politicamente modificadas, constam da Constituição de 1988. Além de outras, que ainda poderiam frutificar rumo a uma sociedade mais equitativa para todas as pessoas que a constituem.
Sem outro apoio fora suas convicções (e o de pessoas como Heloisa Alberto Torres e Carlos Estevão de Oliveira), Nimuendajú não somente entrou em choque com os intelectuais xenófobos do Estado Novo. Ele também desafiou abertamente os militares que davam as cartas na questão indígena no primeiro governo de Getúlio Vargas, além de confrontos — mas também acordos — com fazendeiros, seringalistas, religiosos e, inclusive, indígenas. Qual teria sido o impulso vital que o levou a viver durante 39 anos de tribo em tribo, às vezes em situações que hoje parecem ser quase que de mendicância?
Uma pista poderia ser a frase de sua irmã Olga, que, da distante Iena, escreveu em abril de 1938: “Alguns dias atrás falávamos que cada pessoa só deveria trabalhar na área em que está interessada. Assim haveria mais pessoas excelentes no mundo. Mas infelizmente para a maioria o trabalho é apenas como as tetas da vaca. Você é uma das poucas exceções e, apesar de algumas desagradáveis experiências de vida, uma pessoa de sorte”. Na biografia, eu aponto indícios que permitiriam aprofundar essa questão.
Nem herói, nem bafejado pela sorte, muito menos inimigo do “progresso”. Nimuendajú apenas expressou, à sua maneira, o atual conceito de diversidade: “A civilização moderna é apenas uma das formas que a cultura humana pode tomar, as culturas das tribos de índios são outras tantas”. Justamente por ser assim, defrontou-se durante décadas com amostras do poder explícito (e travestido de única opção possível de sociedade) do etnocentrismo resultante da “civilização cristã-ocidental”.
O manifesto de 1933 ficou depositado no Museu Nacional até a sua publicação agora na presente biografia. Essa espécie de aparição tardia parece ser um traço característico do vasto legado de Curt Nimuendajú.
Um de muitos exemplos reunidos na biografia: em 1923, a penúria orçamentária do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) obrigou-o a abandonar o acampamento onde liderara a “pacificação” dos “antropófagos” Parintintin, há décadas acossados por seringalistas e moradores de regiões ribeirinhas do rio Madeira. O diretor do órgão, o ainda general Cândido Rondon, outorgou, porém, os “louros da pacificação” ao antecessor de Nimuendajú e ao seringalista das proximidades, que pagara os custos da “pacificação” estatal. Demitido do SPI e testemunha da acelerada extinção física dos Parintintin, Nimuendajú recusou-se a repetir, anos depois, a operação com os Açurini, procedendo a um rigoroso mea-culpa: “(…) a pacificação dos Parintintin foi o meu último crime dessa natureza (…)”
Curioso é que, convencido do caráter simbiótico dessas relações, ele não tenha sugerido criar uma instituição-irmã do SPI – uma espécie de Serviço de Civilização do Cristão. No lugar de “pacificar” indígenas, seus membros se dedicariam a desarmar “o espírito” de quem tem poder de decisão em gabinetes estatais e escritórios empresariais e conta com poder de fogo em estradas e fazendas. Ainda teriam de ser incluídos os grupos de pessoas que realimentam preconceitos no dia-a-dia, tanto da “superioridade do civilizado” quanto da “inferioridade do primitivo” — mas também do reverso dessa equação ideológica.
Proponho que Nimuendajú teve impulsos e práticas pioneiros, em parte talvez por não ter frequentado a universidade. Sem ter de confirmar teorias acadêmicas, ele confrontou suas próprias observações e reflexões aos escritos de especialistas, além do intercâmbio epistolar com alguns deles. Daí teria surgido o seu autodidatismo, que também espelha pontos de vista de terceiros. A questão nevrálgica seria menos possuir (ou não) um diploma, e mais bem buscar desenvolver o pensamento inquiridor, bem como adquirir a disposição de aceitar tanto equívocos próprios quanto contribuições alheias.
"Participação observadora"
A sua primeira obra já traz várias teses e conclusões que, cem anos depois, continuam influenciando etnólogos, antropólogos e filósofos (embora Nimuendajú, um ano antes de morrer, se considerasse “tolo” por ter formulado algumas delas). Uma leitura desapaixonada de “Die Sagen von der Erschaffung und Vernichtung der Welt als Grundlagen der Religion der Apapokuva-Guarani” mostra que, em 1914, Nimuendajú elaborou várias premissas do método da “observação participante” (e o próprio livro já é o primeiro fruto dessa prática). Isto é, uma década antes do polonês Bronislau Malinowski apresentar o que hoje é tido como o padrão de pesquisa de campo.
Em 1987, ao assinar junto com Charlotte Emmerich a tradução ao português desse livro de Nimuendajú, Eduardo Viveiros de Castro citou esse fato. Comparando a primeira obra de Nimuendajú à de Malinowski, ficam claras as semelhanças entre ambas. Mas são as diferenças que tornam mais visíveis as inovadoras propostas do alemão que virou índio no Brasil. É como se ele, na verdade, tivesse praticado a “participação observadora” nas aldeias visitadas.
O manifesto de 1933 ficou depositado no Museu Nacional até a sua publicação agora na presente biografia. Essa espécie de aparição tardia parece ser um traço característico do vasto legado de Curt Nimuendajú. Convidado por Rondon em 1943 para chefiar o Serviço Etnológico do Conselho Nacional de Política Indígena, ele desabafou sua amargura intelectual: “Porque a mim? Ninguém do SPI nem do CPI jamais leu uma linha do que eu escrevi, nem conhece sequer o título de qualquer publicação minha”. Seu primeiro livro só foi traduzido do alemão ao português 73 anos após a edição original.
Observa-se nos últimos anos a salutar iniciativa de reduzir esse intervalo, mesmo que vários outros trabalhos, em inglês e alemão, ainda esperam vir à luz para o público da pátria que ele adotou em 1922. Desejável seria que os conhecimentos neles contidos “voltassem”, transformados, às comunidades onde surgiram. Mais precisamente, aos grupos indígenas, também mudados, que ainda existem.
* Pane Baruja é autor da biografia Curt Nimuendajú — o alemão que virou índio no Brasil (2014) e mantém o website De gringo a indígena, sobre Curt Nimuendajú, León Cadogan, Egon Shaden e Bartolomeu Melià.
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