por Peter Schröder
Que os antropólogos do final do século XIX e início do século XX não só escreviam para seus pares, mas também para um público mais amplo com diversos interesses por descrições de povos longínquos e estranhos, já se tornou um tipo de conhecimento básico até entre os iniciantes da área. No entanto, tais textos antropológicos popularizados continuam a ser relacionados, sobretudo, com nomes como Sir James Frazer, Bronislaw Malinowski ou Margaret Mead. É menos conhecido, porém, que muitas das grandes obras sulamericanistas da etnologia alemã também foram editadas em versões destinadas a um público composto principalmente por um segmento da população difusamente delineado pela denominação Bildungsbürgertum (um tipo de burguesia intelectual, menos caracterizada por seu capital financeiro). De várias monografias etnológicas que se tornariam clássicas foram lançadas as chamadas Volksausgaben (edições populares). O livro de Max Schmidt faz parte dessa prática na etnologia alemã da época, mas ele foi impresso num período quando ela se encontrava numa crise avassaladora devido aos impactos da derrota na Primeira Guerra Mundial no cenário institucional das ciências na Alemanha. Naquele período, a pesquisa etnológica alemã nas terras baixas da América do Sul parecia ter alcançado um dos estágios finais do declínio pós-guerra. Até o formato pequeno da impressão do livro e suas qualidades editoriais parecem nos fazer lembrar as circunstâncias precárias da etnologia alemã no período entre as guerras.
O livro é uma narrativa de duas expedições etnológicas: uma aos indígenas do Alto Xingu, a outra ao território dos Guató no Pantanal. Embora as expedições tenham sido realizadas em dois períodos diferentes, em 1900/01 e em 1910, o relato dá a impressão de que a segunda era uma continuação imediata da primeira. Na realidade, Schmidt tinha apresentado descrições detalhadas sobre suas atividades de campo em pelo menos três trabalhos:
- Indianerstudien in Zentralbrasilien: Erlebnisse und ethnologische Ergebnisse einer Reise in den Jahren 1900 bis 1901. Berlin: Dietrich Reimer, 1905. [Estudos indígenas no Brasil Central: vivências e resultados etnológicos de uma viagem nos anos 1900 a 1901] [ver http://www.etnolinguistica.org/biblio:schmidt-1905-indianerstudien]
- Reisen in Matto Grosso im Jahre 1910. Zeitschrift für Ethnologie, Berlin, v. 44, p. 130-174, 1912. [Viagens em Mato Grosso no ano 1910] [ver http://www.etnolinguistica.org/biblio:schmidt-1912-matto-grosso]
- Die Guato und ihr Gebiet: Ethnologische und archäologische Ergebnisse der Expedition zum Caracara-Fluss in Matto-Grosso. Baessler-Archiv, Berlin, v. 4, p. 251-283, 1914. [Os Guató e sua área: resultados etnológicos e arqueológicos da expedição ao rio Caracara em Mato Grosso]
"No outono do ano 1900, finalmente vi realizar-se meu antigo desejo de partir para uma viagem de pesquisa aos nativos no interior da América do Sul. Como primeiro destino eu tinha escolhido as cabeceiras do Xingu, uma área que até então tinha ficado completamente intocada pela colonização europeia e a qual me parecia oferecer a garantia de ser, devido a seu isolamento, um campo de trabalho propício para pesquisas etnológicas e a possibilidade de uma estadia, ansiada por muito tempo, entre os filhos da natureza indomada" (p. 5; tradução P.S.).É evidente que citações deste tipo são pratos cheios para análises inspiradas em leituras pós-estruturalistas para denunciar o velho americanismo etnológico, porém tal exercício seria dizer o óbvio. Considero mais interessante tentar entender como o autor procurou, com sua escrita relativamente simples, sem arabescos estilísticos, chamar a atenção dos leitores para um tema completamente periférico para as preocupações da população alemã naquele período histórico, porque não se trata de uma obra que se encaixa no gênero literário de histórias aventureiras. Pelo contrário, são 'histórias de índios' com um protagonista pouco heroico.
Unter Indianern Südamerikas é um livro que representa, de modo inequívoco, um gênero literário que podemos chamar 'histórias de índios'. Não é obra […], nem literatura de campo empolgante, com recursos estilísticos rebuscados. É um livro relativamente sóbrio, escrito num período da biografia de Schmidt quando ele deve ter sentido toda a estagnação pela qual a etnologia alemã estava passando na época.
Chama a atenção que pouquíssimas descrições etnográficas menores entraram no texto. Os temas relatados tratam quase exclusivamente de locais, deslocamentos, acontecimentos, mas também dos indígenas encontrados no caminho. Estes são retratados de forma bastante heterogênea. Por um lado, há observações sobre suas diligências e habilidades físicas. Por outro lado, não faltam histórias recorrentes de avidez e roubos, especialmente nas aldeias do Alto Xingu, e muitos indígenas são descritos como espertalhões. Até há trechos como este:
"Sempre que os índios se mostraram hostis no decorrer de minha viagem, seu ponto mais fraco era que suas decisões levaram bastante tempo para madurar. Por isso, quando se precisa — como sempre será o caso com o etnólogo — saber lidar com os nativos pacificamente, desse modo, em minha opinião, trata-se de saber, sobretudo, de opor-se a essa fraqueza com a maior rapidez e imprevisibilidade possível nas próprias ações e (isto vale como regra geral) nunca consentir nos planos dos nativos por seguir seus conselhos." (p. 16; tradução P.S.)Ou seja, neste estereótipo explícito, os indígenas podem ser ávidos pelas mercadorias trazidas por pesquisadores, mas são um pouco lentos em conectar planos e ações. Falta se perguntar o que podia ter estimulado tal 'avidez' e se a 'lentidão' decisória não podia ter a ver com eventuais receios de retaliações posteriores. Afinal, Schmidt não estava se deslocando numa região onde os indígenas viviam completamente isolados dos contatos com os 'brancos'. Em diversas partes do livro há descrições parcas que indicam influências culturais do entorno colonizador. E algumas dessas descrições inclusive permitem tirar conclusões superficiais sobre mudanças nos perfis de liderança em várias aldeias visitadas.
Além disso, não pode ser esquecido que a região também tinha sido o destino de diversas expedições alemãs, das quais Schmidt só cita aquelas organizadas por Hermann Meyer (1871-1932) nos anos 1896/97 e 1898. Estas tinham apenas um impacto menor na Etnologia em comparação com aquelas organizadas por Karl von den Steinen, porém destacaram-se no cenário geral dos empreendimentos científicos voltados a conhecer o Alto Xingu por sua base financeira mais generosa. Afinal, a família de Meyer também era ativa no mecenato científico. Por isso, Schmidt observa: "Depois dos empreendimentos de Meyer nesta região, as pessoas tinham outras expectativas com relação a minha viagem e era difícil vencer a primeira impressão de decepções entre os índios" (p. 12; tradução P.S.).
Seja como for, citações como aquela da p. 16 fornecem indícios de uma diferença considerável entre um Max Schmidt etnólogo e outro, contador de 'histórias de índios'. Mesmo minimizando o papel do etnólogo na narrativa e destacando mais o expedicionário e viajante, não resta nenhuma impressão heroica. Pelo contrário, as descrições subsequentes de perda de equipamentos, suprimentos e objetos de troca evocam imagens de privações, perigos e sofrimentos, como se um coitado fosse condenado a percorrer uma região repleta de adversidades de onde ele só conseguiu sair esfarrapado e penosamente. O leitor até pode se perguntar como era possível realizar uma pesquisa de campo etnológica nessas condições, em particular entre os Nahukuá e Aweti, cujos interesses pelos objetos de troca são apresentados como avidez insidiosa.
Graças à lealdade e confiabilidade do acompanhante da expedição, o "camarada" Antonio, Schmidt consegue escapar de várias situações incômodas e até perigosas. Além disso, parece que as habilidades musicais do etnólogo serviram para os mais diversos momentos complicados, em particular tocando violino e cantando em alemão. Este assunto, aliás, é um tópico tão repetitivo no livro que se torna difícil não enxergar o aspecto involuntariamente cômico, já que tudo que é reproduzido muitas vezes ou se torna banal ou provoca risos. Certamente seria uma tarefa fútil contabilizar quantas vezes Schmidt tocou e cantou para os indígenas "Margareta, Mädchen ohnegleichen" (Margarida, menina sem igual) para convencê-los de sua inocuidade ou simplesmente para distraí-los.
Mas Schmidt não só passou por momentos difíceis. Acampando com um grupo Bakairi, no dia 12 de maio de 1901, ele fica entusiasmado com a simplicidade da vida na selva. É uma cena curta, nas p. 46-47, com um toque meio romântico, uma exceção no conjunto da narrativa. Sem explorar um possível tópico de crítica à civilização ocidental, Schmidt faz questão de frisar a possibilidade de se adaptar com facilidade às condições de vida modestas em campo: "[…], und an nichts gewöhnt der Mensch sich schneller als an die Sitten seiner Umgebung" [e não há nada a que o ser humano se acostuma mais rápido do que aos modos de sua companhia; p. 28].
Todo o conjunto de dificuldades enfrentadas no Alto Xingu, contudo, não é relatado sobre a expedição aos Guató, no último terço do livro (p. 108-156). O principal incômodo mencionado por Schmidt é o consumo de álcool durante a festa do Cururu, porém as descrições de cenários agradáveis nas aldeias prevalecem.
Unter Indianern Südamerikas é um livro que representa, de modo inequívoco, um gênero literário que podemos chamar 'histórias de índios'. Não é obra ficcional como os romances de Karl May, nem literatura de campo empolgante, com recursos estilísticos rebuscados. É um livro relativamente sóbrio, escrito num período da biografia de Schmidt quando ele deve ter sentido toda a estagnação pela qual a etnologia alemã estava passando na época. Dois anos depois, ele voltaria ao Brasil; em 1929, se aposentaria para emigrar definitivamente.
Peter Schröder [perfil] é professor do Departamento de Antropologia e Museologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco.
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