por Rafael Hoerhann
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Confesso que até então eu nunca havia tido muito interesse pelo assunto, mas, com o achamento dessas centenas de folhas, vi uma oportunidade de trabalhar com fontes interessantes, em sua maioria inéditas, que poderiam proporcionar um bom projeto. Assim, entre 2003 e 2012 escrevi uma dissertação e uma tese, resumidas no parágrafo abaixo:
Do SPI, criado em 1910, nasceu a consciência de acautelamento dos indígenas com a intenção de transforma-los em trabalhadores autossuficientes sob a tutela temporária do Estado. Muitas sociedades indígenas entravam em choque com ocupantes dos seus territórios tradicionais e em Santa Catarina a situação se agravou a partir da chegada de imigrantes alemães na primeira metade do século XIX. Os Xokleng competiam com colonos pelo mesmo espaço e frequentemente travavam conflito físico. Em 1914, Eduardo Hoerhann — que contava com 17 anos — assumiu a liderança do Posto São João (no Alto Vale do Itajaí), cuja equipe deveria conseguir o encontro pacífico com os Xokleng, a fim de reuni-los em um território em comum e iniciar o processo de integração regional. O encontro foi conseguido em 22 de setembro de 1914, acarretando, com o passar dos anos, a assimilação cultural imposta pelo SPI e a perda de quesitos tradicionais como o nomadismo. Foi incrementado o peixe na dieta destes indígenas e, de caçadores e coletores, passaram a ser também agricultores. Eduardo Hoerhann foi funcionário do SPI de 1912 até 1954.
A tese apresenta "o diálogo, durante os anos de 1930, entre Eduardo Hoerhann e Curt Nimuendajú, que se corresponderam para debater aspectos culturais das sociedades indígenas brasileiras e, sobretudo, sobre os Xokleng — na época conhecidos como Botocudos. Também participou deste debate o antropólogo estadunidense Jules Henry."
Parte dos escritos de meu bisavô sobreviveu duas enchentes nos anos 80 (em sua casa, no atual município de José Boiteux, SC) e escapou de ser incendiada pelos novos ocupantes da moradia. A documentação foi higienizada, classificada e trabalhada por mim ao longo de 10 anos, resultando na elaboração da dissertação de mestrado O Serviço de Proteção aos Índios e os Botocudo: a política indigenista através dos relatórios (1912-1926) e a tese de doutorado O Serviço de Proteção aos Índios e a desintegração cultural dos Xokleng (1927–1954), ambas em História pela Universidade Federal de Santa Catarina, sendo esta última defendida em dezembro de 2012. Nela eu apresento o diálogo, durante os anos de 1930, entre Eduardo Hoerhann e Curt Nimuendajú, que se corresponderam para debater aspectos culturais das sociedades indígenas brasileiras e, sobretudo, sobre os Xokleng — na época conhecidos como Botocudos. Também participou deste debate o antropólogo estadunidense Jules Henry, cuja tese resultou em sua obra mais célebre (Jungle People — Kaingang tribe of the highlands of Brazil), baseada nos aspectos socioculturais desta etnia, pelo que ele observou entre 1932 a 1934, no posto indígena pelo qual Eduardo foi responsável por 40 anos. Com inúmeras indagações e troca de conhecimentos entre as três personagens, pude constatar que meu bisavô, como funcionário federal, possuía a ordem de promover a integração dos Xokleng e extinguir traços culturais que prejudicassem este processo. Porém, devido ao contato com esses cientistas, Eduardo precisou enfrentar um dilema entre manter ou extirpar a identidade Xokleng, que o leitor poderá conferir no texto e elaborar suas próprias perguntas.
Também faço um pequeno relato sobre a criação da Escola Getúlio Vargas no fim da década de 30, cuja função primeva era manter a ordem governamental integracionista das novas gerações Xokleng. A escola atendia alunos nascidos na então Reserva Indígena Duque de Caxias (atualmente Terra Indígena Laklãnõ/Xokleng), criada em 1926, e crianças não indígenas filhas de moradores locais e funcionários do SPI. As salas eram mistas, mas algumas aulas eram direcionadas ao gênero da criança. Os alunos aprendiam disciplinas formais como português, história, matemática e civismo, assim como cuidados com o lar, cultivo da terra e noções básicas de higiene. Em suma, sem a documentação encontrada e preservada esses dois trabalhos não teriam sido possíveis.
Rafael Hoerhann é doutor em História pela Universidade Federal de Santa Catarina.
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