por Nelson Sanjad*
O novo número do
Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi.
Ciências Humanas (ISSN 1981-8122) apresenta uma excelente contribuição ao
debate sobre os conceitos de ‘raça’ e ‘identidade’ no Brasil. O dossiê “Corpos,
medidas e nação”, organizado por Vanderlei Sebastião de Souza e Ricardo Ventura
Santos (Fundação Oswaldo Cruz), reúne cinco artigos sobre a história da
antropologia física no país, que destacam as conexões transnacionais, as
adaptações locais e o fundo raciológico das discussões e práticas científicas
de final do século XIX e início do XX. Como demonstram os autores, muitos dos
que viveram e trabalharam naquela época, como Edgard Roquette-Pinto, José
Bastos de Ávila e Álvaro Fróes da Fonseca, dialogaram com seus pares
estrangeiros para demonstrar que o Brasil era uma nação viável, isto é, que a
mestiçagem predominante no país poderia ser interpretada de maneira positiva,
apesar dos preconceitos existentes contra populações negras, índias e mestiças.
Alguns antropólogos chegaram a questionar a validade da classificação racial (negros,
índios e brancos) e os critérios raciais como chave explicativa dos problemas
sociais brasileiros, propondo, em seu lugar, que as condições sanitárias e
socioeconômicas da população eram os verdadeiros problemas a ser enfrentados. Conforme
esclarecem os organizadores na introdução ao dossiê, são “evidentes as
imbricações entre a prática da antropologia física e as questões sociopolíticas
que mobilizavam a sociedade brasileira no início do século XX, sobretudo no que
dizia respeito à organização do país, ao conhecimento de sua população e às
discussões sobre a formação da nacionalidade brasileira”.
Na seção
“Memória”, o assunto volta a ser abordado no texto “O Congresso Universal de Raças, Londres, 1911: contextos, temas e debates”, de Souza e Santos, no qual
são novamente analisados os temas raciais debatidos por antropólogos,
sociólogos e ativistas sociais de diferentes lugares do mundo. Em um ambiente
imperialista, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, os autores contextualizam
o esforço pacifista dos organizadores do evento e destacam a participação dos
representantes brasileiros, João Baptista de Lacerda e Edgard Roquette-Pinto,
que defenderam uma visada menos preconceituosa sobre a mestiçagem e mais promissora
sobre o futuro do Brasil.
É tentador fazer
um paralelo entre o excelente nível das análises publicadas no Boletim e a
atualidade, momento em que questões sociopolíticas voltam a provocar um debate racial
tão ou mais intenso do que verificamos há cem anos, não mais alimentado por
dúvidas sobre a existência e a definição de uma ‘nacionalidade’ brasileira, e
sim pelo discurso dos ‘excluídos’. Numa época em que a criação de ‘cotas
raciais’ se estabelece como política pública para acesso ao ensino superior, ao
serviço público, a bolsas de pesquisa científica e até mesmo ao financiamento de
projetos artísticos, num movimento que parece reverter o esforço pela
desracialização da sociedade que teve início com nossos antropólogos pioneiros,
torna-se interessante pensar em um movimento ideológico às avessas, no qual se admite
oficialmente a existência da ‘raça’ para vitimizar alguns grupos sociais e,
dessa maneira, implementar ações ditas ‘afirmativas’, mesmo que elas subvertam
preceitos básicos à democracia, como a isonomia, e a luta por uma educação pública
de qualidade e universal.
Antropólogos,
sociólogos, cientistas políticos e historiadores vêm alertando, em diversos
meios, sobre os efeitos perversos das ditas ‘cotas raciais’ e sobre a
replicação acrítica, no Brasil, de políticas afirmativas gestadas para outros
contextos, como o norte-americano. Apesar da intensa propaganda política feita
pelo governo federal, por algumas instituições de ensino superior e por alguns
veículos de comunicação, sobre o sucesso das ‘cotas’, a imprensa tem noticiado
resultados não previstos e que tendem a gerar novos conflitos sociais, como a
concorrência assimétrica entre ‘cotistas’ e ‘não-cotistas’ nos vestibulares,
como a injunção do mercado de trabalho na seleção de mão-de-obra e como a
segregação de turmas e estudantes no ambiente acadêmico.
Em toda essa
discussão, dois pontos têm merecido pouca atenção de ambos os lados: a
eficiência das políticas alternativas às ‘cotas raciais’, que não se esgotam
nas ‘cotas sociais’, mas se desdobram em complexas políticas educacionais de curto,
médio e longo prazos; e a tradição da pesquisa antropológica brasileira, que
fez grande esforço para analisar, criticar, adaptar e superar teorias racistas
e métodos de pesquisa baseados em procedimentos raciológicos. O número atual do
Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi.
Ciências Humanas supre, agora, esta lacuna, contextualizando as discussões
correntes no século XX, valorizando a obra de intelectuais brasileiros que
estudaram seriamente o tema e, finalmente, enriquecendo os debates
contemporâneos sobre o assunto, que, em geral, oscilam de maneira superficial entre
o discurso conservador e o populista.
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Para saber mais:
Lacerda, Jean Baptiste de. 1911. The metis, or half-breeds, of Brazil. In Spiller, Gustav (org.), Papers on inter-racial problems communicated to the First Universal Races Congress. Londres: P. S. King & Son; Boston: The World's Peace Foundation, p. 377-383.
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