Monday, January 28, 2013

Reflexões históricas sobre os conceitos de ‘raça’ e ‘identidade’ no Brasil



por Nelson Sanjad*

O novo número do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas (ISSN 1981-8122) apresenta uma excelente contribuição ao debate sobre os conceitos de ‘raça’ e ‘identidade’ no Brasil. O dossiê “Corpos, medidas e nação”, organizado por Vanderlei Sebastião de Souza e Ricardo Ventura Santos (Fundação Oswaldo Cruz), reúne cinco artigos sobre a história da antropologia física no país, que destacam as conexões transnacionais, as adaptações locais e o fundo raciológico das discussões e práticas científicas de final do século XIX e início do XX. Como demonstram os autores, muitos dos que viveram e trabalharam naquela época, como Edgard Roquette-Pinto, José Bastos de Ávila e Álvaro Fróes da Fonseca, dialogaram com seus pares estrangeiros para demonstrar que o Brasil era uma nação viável, isto é, que a mestiçagem predominante no país poderia ser interpretada de maneira positiva, apesar dos preconceitos existentes contra populações negras, índias e mestiças. Alguns antropólogos chegaram a questionar a validade da classificação racial (negros, índios e brancos) e os critérios raciais como chave explicativa dos problemas sociais brasileiros, propondo, em seu lugar, que as condições sanitárias e socioeconômicas da população eram os verdadeiros problemas a ser enfrentados. Conforme esclarecem os organizadores na introdução ao dossiê, são “evidentes as imbricações entre a prática da antropologia física e as questões sociopolíticas que mobilizavam a sociedade brasileira no início do século XX, sobretudo no que dizia respeito à organização do país, ao conhecimento de sua população e às discussões sobre a formação da nacionalidade brasileira”.


Na seção “Memória”, o assunto volta a ser abordado no texto “O Congresso Universal de Raças, Londres, 1911: contextos, temas e debates”, de Souza e Santos, no qual são novamente analisados os temas raciais debatidos por antropólogos, sociólogos e ativistas sociais de diferentes lugares do mundo. Em um ambiente imperialista, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, os autores contextualizam o esforço pacifista dos organizadores do evento e destacam a participação dos representantes brasileiros, João Baptista de Lacerda e Edgard Roquette-Pinto, que defenderam uma visada menos preconceituosa sobre a mestiçagem e mais promissora sobre o futuro do Brasil.

É tentador fazer um paralelo entre o excelente nível das análises publicadas no Boletim e a atualidade, momento em que questões sociopolíticas voltam a provocar um debate racial tão ou mais intenso do que verificamos há cem anos, não mais alimentado por dúvidas sobre a existência e a definição de uma ‘nacionalidade’ brasileira, e sim pelo discurso dos ‘excluídos’. Numa época em que a criação de ‘cotas raciais’ se estabelece como política pública para acesso ao ensino superior, ao serviço público, a bolsas de pesquisa científica e até mesmo ao financiamento de projetos artísticos, num movimento que parece reverter o esforço pela desracialização da sociedade que teve início com nossos antropólogos pioneiros, torna-se interessante pensar em um movimento ideológico às avessas, no qual se admite oficialmente a existência da ‘raça’ para vitimizar alguns grupos sociais e, dessa maneira, implementar ações ditas ‘afirmativas’, mesmo que elas subvertam preceitos básicos à democracia, como a isonomia, e a luta por uma educação pública de qualidade e universal.

Antropólogos, sociólogos, cientistas políticos e historiadores vêm alertando, em diversos meios, sobre os efeitos perversos das ditas ‘cotas raciais’ e sobre a replicação acrítica, no Brasil, de políticas afirmativas gestadas para outros contextos, como o norte-americano. Apesar da intensa propaganda política feita pelo governo federal, por algumas instituições de ensino superior e por alguns veículos de comunicação, sobre o sucesso das ‘cotas’, a imprensa tem noticiado resultados não previstos e que tendem a gerar novos conflitos sociais, como a concorrência assimétrica entre ‘cotistas’ e ‘não-cotistas’ nos vestibulares, como a injunção do mercado de trabalho na seleção de mão-de-obra e como a segregação de turmas e estudantes no ambiente acadêmico.

Em toda essa discussão, dois pontos têm merecido pouca atenção de ambos os lados: a eficiência das políticas alternativas às ‘cotas raciais’, que não se esgotam nas ‘cotas sociais’, mas se desdobram em complexas políticas educacionais de curto, médio e longo prazos; e a tradição da pesquisa antropológica brasileira, que fez grande esforço para analisar, criticar, adaptar e superar teorias racistas e métodos de pesquisa baseados em procedimentos raciológicos. O número atual do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas supre, agora, esta lacuna, contextualizando as discussões correntes no século XX, valorizando a obra de intelectuais brasileiros que estudaram seriamente o tema e, finalmente, enriquecendo os debates contemporâneos sobre o assunto, que, em geral, oscilam de maneira superficial entre o discurso conservador e o populista.

Para acessar a revista, clique aqui.

* Nelson Sanjad [perfil] é doutor em História das Ciências e da Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro. Pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi/MCTI. Editor científico do “Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas”. Membro da Diretoria 2012-2014 da Sociedade Brasileira de História da Ciência.

Para saber mais:

Lacerda, Jean Baptiste de. 1911. The metis, or half-breeds, of Brazil. In Spiller, Gustav (org.), Papers on inter-racial problems communicated to the First Universal Races Congress. Londres: P. S. King & Son; Boston: The World's Peace Foundation, p. 377-383. 

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