por Sheila Moura Hue*
A história das edições do livro de memórias do inglês Anthony Knivet (Canivete para os lusófonos) é tão curiosa quanto a própria obra.
Knivet passou cerca de dez anos no Brasil no final do século XVI. Entre outras peripécias, foi servo de um “mestiço”, escravo em uma plantação de cana-de-açúcar, desbravador dos sertões das capitanias do Rio de Janeiro e de São Vicente em busca de índios e de metais preciosos, líder guerreiro de uma população indígena, náufrago no litoral de Alagoas, soldado na conquista do Rio Grande do Norte e criado do governador Salvador Correia de Sá em Lisboa.
Após conseguir fugir de volta para a Inglaterra, ainda durante o reinado da rainha Elizabeth, escreveu as memórias de suas aventuras brasileiras, um dos mais impressionantes e inusitados testemunhos sobre o Brasil quinhentista pelo ineditismo de suas informações sobre os povos indígenas, a sociedade colonial e a geografia brasileira. Impressiona também a sua falta de pudor em contar episódios que envergonhariam qualquer candidato a herói.
Sabe-se que vendeu o manuscrito de seu livro, por um alto preço, para Richard Hakluyt, o organizador de uma monumental coletânea de relatos de viagens. Hakluyt, no entanto, não publicou o manuscrito de Knivet. Talvez julgasse o teor das memórias pouco nobre para um súdito da rainha, apesar do livro conter munição suficiente para arruinar a imagem de portugueses e espanhóis, o que era um ponto positivo para os ingleses na época.
O livro de Knivet só veio a ser publicado em 1625 pelo continuador de Hakluyt, Samuel Purchas, na sua igualmente monumental coletânea de viagens. Entretanto, Purchas era um editor com métodos muito curiosos. Preferia resumir os originais à sua maneira de forma a “evitar o tédio dos leitores”. A tesoura de Purchas estava especialmente afiada quando editou o manuscrito – hoje desaparecido – do nosso Canivete. Em um determinado trecho, ele declara: “para a salvaguarda da concisão do texto, foram omitidas algumas passagens que aqui se seguiriam, e também em outros trechos da história”.
O resultado é um texto cheio de incongruências cronológicas e narrativas, desafios quase incontornáveis para os editores que enfrentaram a obra. O editor holandês Pieter van de Aa publicou em 1706 uma tradução holandesa do livro de Knivet, mas não incluiu as duas partes finais do livro que tratam dos povos indígenas e da geografia brasileira.
A primeira edição em português, publicada na Revista do IHGB em 1878, baseou-se nessa tradução holandesa, pois na época os editores não tiveram acesso à coleção de Purchas. Aqui, também, não foi incluído importante capítulo sobre “as diversas tribos de selvagens no Brasil”. Pode-se imaginar, ainda, as várias imprecisões de uma tradução de uma tradução.
Foi só em 1947 que o livro ganhou uma tradução integral direta do inglês, em uma excelente edição anotada de Francisco e Guiomar Carvalho Franco. Recentemente, eu e Vivien Kogut Lessa de Sá preparamos uma outra edição comentada, também a partir do texto publicado por Purchas em 1625. A tradução de Vivien procurou seguir de perto o estilo direto e objetivo de Knivet, numa linguagem mais atual do que a da tradução feita nos anos 40. Nossas notas se beneficiaram da bibliografia surgida nos últimos 60 anos, mas o relato de Knivet ainda apresenta vários enigmas a serem desvendados. Muitos deles estão sendo investigados na tese de doutorado desenvolvida na Universidade de Essex por Vivien Kogut Lessa de Sá.
* Coordenadora do Núcleo Manuscritos e Autógrafos do Real Gabinete Português de Leitura, Sheila Moura Hue é doutora em Letras pela PUC-Rio, com pós-doutorado em Letras pela UFRJ. Além da edição do livro de Knivet, fez edições comentadas da obra de Pedro de Magalhães Gândavo (A Primeira História do Brasil. História da Província Santa Cruz. Zahar, 2004) e das primeiras cartas jesuíticas escritas no Brasil a serem impressas (Primeiras Cartas do Brasil. 1551-1555. Zahar, 2006). Seu livro mais recente trata da alimentação no Brasil quinhentista a partir dos relatos da época (Delícias do Descobrimento. A gastronomia brasileira no século XVI. Zahar, 2008).
Edições de Anthony Knivet
Knivet, Anthony. The admirable adventures and strange fortunes of master Antonie Knivet, wich went with Master Thomas Candish in his second voyage to the south sea. 1591. In: PURCHAS, Samuel. Hakluytus Posthumus or Purchas his pilgrimes in five bookes. Livro IV. Londres: Impresso por William Stansby para Henrie Fetherstone, 1625.
______. Aanmerkelyke reys [...] van Anthony Knivet, gedaan uyt Engelland na de Zuyd-Zee, met Thomas Candish, anno 1591 en de volgende jaren. Leiden, P. Vander Aa, 1706.
______. “Narração da viagem, que nos annos de 1591 e seguintes, fez Antonio Knivet da Inglaterra ao Mar do Sul, em companhia de Thomas Cavendish. Tradução do holandês. Revista Trimensal do Instituto Histórico Geographico e Ethnographico do Brasil. Tomo XLI. Parte Primeira. Rio de Janeiro, 1878.
______. Vária fortuna e estranhos fados de Anthony Knivet, que foi com Tomás Cavendish, em sua segunda viagem, para o Mar do Sul, no ano de 1591. Versão do original inglês por Guiomar de Carvalho Franco. Com anotações e referências de Francisco de Assis Carvalho Franco. São Paulo, Editora Brasiliense, 1947.
______. As incríveis aventuras e estranhos infortúnios de Anthony Knivet. Tradução de Vivien Kogut Lessa de Sá. Edição, introdução e notas de Sheila Moura Hue. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2007.
A história das edições do livro de memórias do inglês Anthony Knivet (Canivete para os lusófonos) é tão curiosa quanto a própria obra.
Knivet passou cerca de dez anos no Brasil no final do século XVI. Entre outras peripécias, foi servo de um “mestiço”, escravo em uma plantação de cana-de-açúcar, desbravador dos sertões das capitanias do Rio de Janeiro e de São Vicente em busca de índios e de metais preciosos, líder guerreiro de uma população indígena, náufrago no litoral de Alagoas, soldado na conquista do Rio Grande do Norte e criado do governador Salvador Correia de Sá em Lisboa.
Após conseguir fugir de volta para a Inglaterra, ainda durante o reinado da rainha Elizabeth, escreveu as memórias de suas aventuras brasileiras, um dos mais impressionantes e inusitados testemunhos sobre o Brasil quinhentista pelo ineditismo de suas informações sobre os povos indígenas, a sociedade colonial e a geografia brasileira. Impressiona também a sua falta de pudor em contar episódios que envergonhariam qualquer candidato a herói.
Sabe-se que vendeu o manuscrito de seu livro, por um alto preço, para Richard Hakluyt, o organizador de uma monumental coletânea de relatos de viagens. Hakluyt, no entanto, não publicou o manuscrito de Knivet. Talvez julgasse o teor das memórias pouco nobre para um súdito da rainha, apesar do livro conter munição suficiente para arruinar a imagem de portugueses e espanhóis, o que era um ponto positivo para os ingleses na época.
O livro de Knivet só veio a ser publicado em 1625 pelo continuador de Hakluyt, Samuel Purchas, na sua igualmente monumental coletânea de viagens. Entretanto, Purchas era um editor com métodos muito curiosos. Preferia resumir os originais à sua maneira de forma a “evitar o tédio dos leitores”. A tesoura de Purchas estava especialmente afiada quando editou o manuscrito – hoje desaparecido – do nosso Canivete. Em um determinado trecho, ele declara: “para a salvaguarda da concisão do texto, foram omitidas algumas passagens que aqui se seguiriam, e também em outros trechos da história”.
O resultado é um texto cheio de incongruências cronológicas e narrativas, desafios quase incontornáveis para os editores que enfrentaram a obra. O editor holandês Pieter van de Aa publicou em 1706 uma tradução holandesa do livro de Knivet, mas não incluiu as duas partes finais do livro que tratam dos povos indígenas e da geografia brasileira.
A primeira edição em português, publicada na Revista do IHGB em 1878, baseou-se nessa tradução holandesa, pois na época os editores não tiveram acesso à coleção de Purchas. Aqui, também, não foi incluído importante capítulo sobre “as diversas tribos de selvagens no Brasil”. Pode-se imaginar, ainda, as várias imprecisões de uma tradução de uma tradução.
Foi só em 1947 que o livro ganhou uma tradução integral direta do inglês, em uma excelente edição anotada de Francisco e Guiomar Carvalho Franco. Recentemente, eu e Vivien Kogut Lessa de Sá preparamos uma outra edição comentada, também a partir do texto publicado por Purchas em 1625. A tradução de Vivien procurou seguir de perto o estilo direto e objetivo de Knivet, numa linguagem mais atual do que a da tradução feita nos anos 40. Nossas notas se beneficiaram da bibliografia surgida nos últimos 60 anos, mas o relato de Knivet ainda apresenta vários enigmas a serem desvendados. Muitos deles estão sendo investigados na tese de doutorado desenvolvida na Universidade de Essex por Vivien Kogut Lessa de Sá.
* Coordenadora do Núcleo Manuscritos e Autógrafos do Real Gabinete Português de Leitura, Sheila Moura Hue é doutora em Letras pela PUC-Rio, com pós-doutorado em Letras pela UFRJ. Além da edição do livro de Knivet, fez edições comentadas da obra de Pedro de Magalhães Gândavo (A Primeira História do Brasil. História da Província Santa Cruz. Zahar, 2004) e das primeiras cartas jesuíticas escritas no Brasil a serem impressas (Primeiras Cartas do Brasil. 1551-1555. Zahar, 2006). Seu livro mais recente trata da alimentação no Brasil quinhentista a partir dos relatos da época (Delícias do Descobrimento. A gastronomia brasileira no século XVI. Zahar, 2008).
Edições de Anthony Knivet
Knivet, Anthony. The admirable adventures and strange fortunes of master Antonie Knivet, wich went with Master Thomas Candish in his second voyage to the south sea. 1591. In: PURCHAS, Samuel. Hakluytus Posthumus or Purchas his pilgrimes in five bookes. Livro IV. Londres: Impresso por William Stansby para Henrie Fetherstone, 1625.
______. Aanmerkelyke reys [...] van Anthony Knivet, gedaan uyt Engelland na de Zuyd-Zee, met Thomas Candish, anno 1591 en de volgende jaren. Leiden, P. Vander Aa, 1706.
______. “Narração da viagem, que nos annos de 1591 e seguintes, fez Antonio Knivet da Inglaterra ao Mar do Sul, em companhia de Thomas Cavendish. Tradução do holandês. Revista Trimensal do Instituto Histórico Geographico e Ethnographico do Brasil. Tomo XLI. Parte Primeira. Rio de Janeiro, 1878.
______. Vária fortuna e estranhos fados de Anthony Knivet, que foi com Tomás Cavendish, em sua segunda viagem, para o Mar do Sul, no ano de 1591. Versão do original inglês por Guiomar de Carvalho Franco. Com anotações e referências de Francisco de Assis Carvalho Franco. São Paulo, Editora Brasiliense, 1947.
______. As incríveis aventuras e estranhos infortúnios de Anthony Knivet. Tradução de Vivien Kogut Lessa de Sá. Edição, introdução e notas de Sheila Moura Hue. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2007.
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