Tuesday, October 4, 2016

Cauiré Imana — o cacique romanceado

por Peter Schröder

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Este ano reli um pequeno livro que tinha lido em 1991, depois de terminar uma pesquisa de campo para o doutorado na Terra Indígena (TI) Cana Brava, dos Guajajara, situada entre as cidades de Barra do Corda e Grajaú, no Maranhão. Trata-se de Cauiré Imana, o cacique rebelde, de Olímpio Martins da Cruz (Brasília: Thesaurus, 1982, 142p.). O livro tem a ver, indiretamente, com a pesquisa realizada — as formas de organização política contemporânea dos Guajajara em sua contextualização histórica — e por isso tinha despertado minha curiosidade. Segundo uma informação na página sobre o autor na Wikipédia, até foi lançada uma reedição em 2015, porém ela não pôde ser confirmada por consulta no website da editora até a data da publicação desta resenha.

Embora o livro seja qualificado de “romance” em algumas páginas na internet, a meu ver este rótulo não é pertinente, no que diz respeito à forma e ao conteúdo da obra. É antes um relato semi-ficcional com algumas pretensões de meticulosidade científica.


Cauiré Imana, o cacique rebelde é sobre um episódio decisivo para as relações dos Guajajara com os regionais não-indígenas, a Rebelião de Alto Alegre, em 1901, suas causas, seu decurso e suas consequências. Na região, os ‘brancos’ também a chamam de “o Massacre de Alto Alegre”. O nome refere-se à Missão de Alto Alegre (1897-1901), um empreendimento de catequese e colonização em terras indígenas, organizado por frades e freiras capuchinhos vindos da Itália (ver mapa com a localização das aldeias Guajajara na TI Cana Brava em 1993). Em 13 de abril de 1901, algumas centenas de Guajajara atacaram Alto Alegre na hora da missa matinal e mataram o maior número possível das pessoas presentes. Depois, por poucos meses, os indígenas conseguiram controlar a região entre as cidades de Barra do Corda e Grajaú, matando ou expulsando todos os ‘brancos’, até que estes mobilizassem suas forças militares para reprimir a rebelião. A reação à rebelião dos Guajajara pode ser interpretada como a última ‘guerra contra os índios’ na história republicana brasileira, ao menos quando se entende como ação de guerra a organização de uma campanha militar para subjugar outro povo e invadir seu território.

A história da Rebelião de Alto Alegre é trágica e comovente, mas seria despropositado recontá-la nesta resenha, porque outros autores já forneceram análises detalhadas como, por exemplo, Mércio Gomes (O índio na história: o povo Tenetehara em busca da liberdade. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 264-280).

flickr:30037970211É interessante observar que o livro de Olímpio Cruz faz parte da bibliografia de diversos trabalhos sobre os Guajajara, mas geralmente não é citado nem direta nem indiretamente, como se fosse considerado alguma referência obrigatória, porém sem utilidade real. E isto tem a ver com as qualidades do livro.

Olímpio Cruz (* 1909, Barra do Corda — † 1996, Brasília) foi um indigenista, escritor e poeta que por muitos anos atuou no interior do Maranhão. Cauiré Imana é uma de suas obras mais conhecidas. Com ela, o autor se apresenta como um historiador regional autodidata com os devidos credenciais por causa de suas experiências demoradas com os indígenas.

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Depois de um prefácio em estilo grandiloquente redigido pelo escritor Wolney Milhomem (1927-1992), Olímpio Cruz começa sua versão sobre o conflito com o anúncio que ele se concentrará em duas figuras principais: Cauiré Imana e Perpetinha. Cauiré Imana, ou João Caboré (segundo os regionais) ou Kawiré Imàn (segundo os Guajajara), foi a liderança principal da rebelião, enquanto Perpétua dos Reis Moreira, ou Perpetinha ou até Prepetinha (segundo as falas regionais), era uma das filhas de latifundiários que estudavam no internato da missão capuchinha quando esta foi atacada. Ela foi sequestrada, supostamente pelo líder Zawaruhu, e seu destino se transformou em um tipo de conto folclórico regional.

O autor apresenta sua obra, modestamente, como um esclarecimento de “fatos” (p. 17), embora tal afirmação categórica só possa provocar dúvidas, quando se olha para o estilo geral do livro com seus diversos trechos narrados sem citar as fontes. A rebelião de Alto Alegre é interpretada como um movimento nativista e até é comparada com Canudos, porém tanto as causas sociais quanto os impactos no cenário nacional foram muito diferentes nos casos dos dois conflitos. Para Cruz, a rebelião indígena no Maranhão foi “consequência de um violento choque entre duas civilizações culturalmente distanciadas vários séculos” ([sic] p. 17), o que revela certo ranço evolucionista presente no indigenismo daquela geração.

flickr:30037969931Depois de uma introdução geral ao cenário regional, o autor cita as causas da rebelião de seu ponto de vista: a incompetência cultural dos missionários e a exploração econômica dos indígenas pelos colonos. Assim, a rebelião é descrita como um levante de explorados e, ao mesmo, tempo, um conflito cultural. Embora ela pareça, de fato, ter tido esses ingredientes, outras possibilidades explicativas não são levadas em consideração, por exemplo, as possíveis tensões entre os missionários e a elite econômica regional e a influência desta sobre uma parte dos Guajajara. Desse modo, o olhar para as causas do conflito fica restrito à Missão de São José da Providência e seu entorno imediato, sem levar em conta o cenário regional mais amplo.

A sequência dos acontecimentos é iniciada com a biografia esquemática de Kawiré Imàn. Segundo Cruz, o acontecimento desencadeador da tragédia teria sido um sonho do cacique: uma viagem para São Luís, um encontro com o governador e a conquista da chefia dos Guajajara. Depois, o sonho teria se tornado realidade: Kawiré Imàn partiu com um séquito indígena para a capital da província aonde ele chegou com a ajuda de um dono de uma embarcação fluvial, João Barros ou “João Piloto”. Em São Luís, ele teria sido recebido no Palácio dos Leões pelo governador João Gualberto Torreão da Costa. A recepção teria sido acolhedora e amigável, e Kawiré Imàn teria voltado para sua aldeia não só com ferramentas agrícolas, mas também com armas e uma nomeação para o cargo de supremo chefe de seu povo.

No entanto, tal encontro com o governador pode ser mera invenção ficcional, mas, segundo Mércio Gomes (op. cit., p. 272), há indícios de que a viagem para São Luís de fato foi realizada.
Olímpio Cruz descreve detalhadamente todos os acontecimentos que seguiram: a formação da coalizão guerreira, o ataque à missão, as retaliações militares e as consequências dramáticas para os Guajajara. Mas, apesar da afirmação de esclarecer “fatos”, restam grandes dúvidas sobre a versão apresentada. Quais as origens das informações, especialmente aquelas sobre os acontecimentos nas aldeias? Quais as fontes dos numerosos diálogos em fala direta, a não ser a imaginação do autor? No final do livro (p. 123), há uma lista com os nomes dos informantes, mas como seus depoimentos se relacionam com a narrativa? É mais um atestado de amadorismo histórico do que a prova da seriedade de uma historiografia regional.

A leitura deixa patente um conflito que o autor certamente teve que viver. Por um lado, ele não afrontou a população regional com críticas apropriadas aos seus preconceitos anti-indígenas, bastante fortes em cidades como Barra do Corda. Afinal, ele era filho da cidade. Por outro lado, ele deixa transparecer suas simpatias pelos indígenas e seus sofrimentos.
E aqui chegamos ao ponto mais fraco do livro. No caso de uma historiografia regional despretensiosa pode ser considerado perdoável, quando um autor não quer se arriscar a realizar análises que poderiam expô-lo a críticas acadêmicas. Mas no caso do livro de Olímpio Cruz o problema é outro: muitas partes são meramente ficcionais ou podem ser, ao máximo, reproduções não questionadas e não indicadas de depoimentos de seus informantes. Desse modo, Cauiré Imana tem muito mais em comum com a biografia semi-ficcional de Nimuendajú, escrita pelo jornalista Georg Menchén (Nimuendajú — Bruder der Indianer. Leipzig: VEB Brockhaus, 1979), do que com uma tentativa de um relato objetivo sobre a rebelião de Alto Alegre. As numerosas palavras indígenas inseridas no texto apenas passam a impressão de uma suposta ‘autenticidade’, porém não acrescentam confiabilidade.

A leitura produz mais dúvidas e questionamentos do que ‘esclarecimentos de fatos’. Quais foram as relações de Kawiré Imàn com a missão e os missionários? De fato, há aspectos da biografia do cacique nem mencionados no livro e que podem ajudar a entender melhor os motivos pessoais de sua revolta e sua personalidade. Tampouco ficou claro como Kawiré Imàn morreu na prisão em Barra do Corda. E, sobretudo, quais foram as consequências para os Guajajara em longo prazo? As retaliações militares provocaram a dispersão espacial de muitas aldeias e o afastamento dos regionais não indígenas por vários anos, mas o impacto imprevisto e mais duradouro foram mudanças nas relações interétnicas regionais.

flickr:29493842234Em revisão histórica, o conflito não terminou em 1901 ou nos anos seguintes. Décadas depois, os missionários voltariam, e também se instalaria, a partir da década de 1950, no meio da TI Cana Brava, um assentamento de posseiros que ficou conhecido pelo nome de São Pedro dos Cacetes. A história e dinâmica deste conflito foram analisadas detalhadamente pela antropóloga Elizabeth Coelho, da UFMA, em sua tese de doutorado (Territórios em confronto: a dinâmica da disputa pela terra entre índios e brancos no Maranhão. São Paulo: Hucitec, 2002). Desse modo, os Guajajara só conseguiram reconquistar o domínio (quase) completo de sua terra em 1995/96, depois da remoção dos posseiros, ou seja, depois de um conflito de quase cem anos.

Mas, depois das críticas, também é importante destacar os méritos do livro. Trata-se, em certo sentido, de uma obra pioneira sobre o conflito, porque antes de Olímpio Cruz, foram autores eclesiásticos e jornalistas que dominaram as escritas sobre os acontecimentos em Alto Alegre. Uma parte dessas fontes encontra-se no anexo do livro, contudo majoritariamente reproduzidas em qualidade bastante precária. Enquanto a imprensa local da época da rebelião tinha como característica principal um estilo panfletário e partidário, os capuchinhos optaram, por motivos evidentes, por versões cheias de vitimização.

A leitura deixa patente um conflito que o autor certamente teve que viver. Por um lado, ele não afrontou a população regional com críticas apropriadas aos seus preconceitos anti-indígenas, bastante fortes em cidades como Barra do Corda. Afinal, ele era filho da cidade. Por outro lado, ele deixa transparecer suas simpatias pelos indígenas e seus sofrimentos. Essas simpatias ficam mais nitidamente expressas na história de Perpetinha, a moça branca raptada pelo líder Zawaruhu durante o ataque à missão. Perpetinha nunca mais voltaria para sua família e seu destino se perdeu em fragmentos nebulosos do folclore regional. Zawaruhu é retratado como um verdadeiro gentleman, que, com a ajuda de sua irmã, mostra o tempo inteiro seus sentimentos mais nobres à menina sequestrada. Uma comparação com algumas obras do romantismo brasileiro não me parece ser despropositada. Na realidade, há indícios suficientes que as meninas brancas do internato da missão ou foram assassinadas imediatamente durante o ataque ou foram raptadas e, com isso, vítimas de violência sexual. Talvez Perpetinha não tenha escapado desse destino cruel. Em Cauiré Imana, no entanto, temos uma inversão de um famoso topos folclórico. São conhecidíssimas das mais diversas partes do Brasil as estórias sobre avós ou bisavós capturadas com laços e depois “amansadas”, ou seja, relatos eufêmicos de violência sexual. Em comparação com essas estórias, a relação de Zawaruhu e Perpetinha é o oposto e a inversão imaginária da violência ‘branca’ contra os indígenas.

Resumindo: não fiquei decepcionado com a releitura da obra, mas ela não conseguiu diminuir minhas dúvidas e meus incômodos que resultaram da primeira leitura.

Ela ainda é recomendável para leitores que não conhecem a história de Alto Alegre? Talvez. Mas apenas quando complementada por outras, como os livros de Elizabeth Coelho e Mércio Gomes, por exemplo.

Mas para ter algum acesso às visões indígenas sobre a rebelião recomendo, sobretudo, dois documentários de Murilo Santos. O primeiro, O Massacre do Alto Alegre, de 2004, está disponível no YouTube. Gravado tanto no Brasil quanto na Itália, o filme de 55 minutos mostra também diversos depoimentos indígenas e deixa explícito que os custos de vidas humanas, afinal de contas, ficaram muito mais altos para os Guajajara. Desse modo, o massacre dos moradores da missão teve como resultado um massacre muito maior.

Outro documentário do mesmo diretor, Na Terra de Caboré, é de 1986.


Peter Schröder [perfil] é professor do Departamento de Antropologia e Museologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco.

7 comments:

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